UMA TRISTEZA DOÍDA, um sentimento de ausência, uma perplexidade nos incomodam. Quão difícil é contemplar a morte de milhares de irmãos nossos do povo bom do Haiti. Somou-se a este calvário coletivo a dor pessoal diante da experiência de orfandade que vivemos com a morte da doutora Zilda Arns Neumann, a "Oma" de milhares de netas e netos que participam da Pastoral da Criança.
Ficou este nó na garganta: por que tal catástrofe? E por que com um povo que já viveu tantas? Por que quem fez tanto bem como Zilda morre antes do tempo no exato momento em que profetiza tempos de paz, de amor e de vida?
Onde estará a resposta? Uma antiga lenda do cristianismo dizia que todas as perguntas aos sofrimentos humanos seriam respondidas quando fosse redescoberto o paradeiro do Santo Graal, o cálice de Cristo. Milhares de cristãos passaram suas vidas na busca do cálice sagrado. O Santo Graal teria as respostas que buscamos para esta hora crucial do povo irmão do Haiti? O Santo Graal nos ajudaria a interpretar a perda da dra. Zilda?
Creio que sim! Zilda fez seu caminho de vida e mostrou, por sua morte, o segredo do viver.
Ela decifrou o enigma e bebeu do cálice sagrado. Zilda morreu por obedecer ao convite da Unicef e oferecer-se integralmente pelas crianças de todo o planeta. Por este sim integral, ela viverá. Zilda falou de Deus com suas mãos, com a ciência médica, com o coração de mãe, com o sorriso terno, com a fé teimosa e convicta. Por este Deus de amor por quem viveu, ela ressuscitará.
Zilda creu no voluntariado que envolve a todos na graça do serviço e da alegria. Creu nas mulheres pobres e no mutirão do saber partilhado. Creu no soro caseiro, na pesagem semanal, no aleitamento materno e na multimistura. Creu nas ações educativas de base.
Creu no sorriso das crianças. Creu na vida. Creu na esperança. Zilda encontrou o Santo Graal que nós tanto buscávamos de forma equivocada e mítica.
Este o segredo: o Santo Graal esteve sempre nas mãos das crianças. Está no ventre das grávidas. Está na ternura dos pobres. Está no amor feito ação e na verdade feita perdão.
O segredo emergiu luminoso da boca da doutora Zilda na última fala de sua vida: "Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e nas montanhas, longe de predadores, ameaças e perigos, e mais perto de Deus, deveríamos cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-los".
Obrigado, querida e amada doutora Zilda. Por tua morte e por tua vida. Por tua missão e por tua entrega. Por teu amor e por teu sorriso. Grato por nos ensinar a ver milagres de Deus dentro das entranhas da dor.
Grato por ver com teus olhos ressurreição onde todos só conseguem vem fatalidade. Grato por experimentar e gestar vida onde tudo revela dor. Você encontrou o verdadeiro Graal: bebeu do cálice do amor doando sua própria vida. Esta é a resposta, este é o lugar sagrado: uma vida triturada, misturada e semeada com o povo haitiano. Este é o verdadeiro sentido de viver: fidelidade ao Evangelho no seguimento de Jesus, com fé, esperança e amor.
FERNANDO ALTEMEYER JUNIOR, mestre em teologia e doutor em ciências sociais, é professor do Depto. de Ciências da Religião da PUC-SP.
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