Eugenio Bucci e Demétrio Magnoli, comentaristas, acusam reportagem que acabava de ser exibida de favorecer o lado oficial
Por cerca de três minutos, os telespectadores do Jornal da Cultura, transmitido de segunda-feira a sábado pela TV Cultura de São Paulo, puderam assistir, na noite de terça-feira, a uma cena praticamente inédita na televisão brasileira - alguém criticar, ao vivo e em cores, o próprio noticiário que estava sendo levado ao ar, qualificando uma reportagem de "merchandising".
O episódio ocorreu quando a apresentadora Maria Cristina Poli perguntou aos dois comentaristas do jornal, Demétrio Magnoli e Eugênio Bucci, o que achavam de uma reportagem exibida, que exaltava várias realizações da Secretaria da Saúde de São Paulo (PSDB), incluindo uma entrevista do secretário Guido Cerri.
"Eu fiz jornalismo e aprendi que notícia, quando se trata de governo, é uma coisa prática, já adotada. Notícia é quando o governo tomou uma atitude, não quando diz que vai fazer alguma coisa", disse Magnoli.
A apresentadora estranhou: "Você está criticando a matéria, Demétrio?" A resposta: "O que estou dizendo é que isso parece merchandising do governo". Com a naturalidade possível, ela voltou-se para Bucci, perguntando-lhe se concordava. "Eu concordo sim", avisou o comentarista. "É importante ter claro que o protagonista de notícia é o interesse público. Ou então, uma medida que modifica a realidade. Mas intenções não têm esse poder."
Cristina ameaçou outra pergunta, mas Bucci foi em frente: "Elas (as intenções) podem criar uma expectativa que não será confirmada. Deve-se usar o jornalismo mais para cobrar o poder do que para promover suas ações." A apresentadora empenhou-se em defender a reportagem: "Vocês não acham que a cobrança só é possível quando isso é divulgado?" Magnoli manteve a crítica: "Todos os atos de governo são públicos. O que se pode fazer é ir lá daqui a seis meses e saber se foi feito". E ela, encerrando: "Sim, isso é jornalismo."
Em frente
Num esclarecimento sobre o episódio, a TV Cultura defendeu ontem o "formato mais analítico" do jornal, que "tem como principal proposta o debate, com diferentes pontos de vista dos convidados". Adiantou que os dois comentaristas "permanecem no telejornal, expondo sempre suas opiniões com total liberdade".
Magnoli concorda com a explicação. "Aceitei participar do programa justamente por causa dessa inovação". Ele considera "um acerto" o jornal mandar para o ar uma crítica a uma notícia que acabava de ser exibida: "Acho ousada a proposta de se convidar comentaristas que possam criticar até o próprio jornal".
Propaganda oficial
A reportagem sobre saúde, que foi definida como "merchandising" pelos dois convidados, proclamava que "a ideia é oferecer serviços de qualidade, para impedir que (os doentes) venham para a capital". O secretário Guido Cerri afirmava, na entrevista que encerrava a matéria, que "cada região tem de ter recursos para atender a todos os pacientes".
O problema, diz Magnoli, é que os governos "tendem a tentar usar as tevês públicas para fazer propaganda oficial. Mesmo não sendo uma prática corrente da televisão, algumas dessas pautas acabam passando. Foi o que aconteceu."
Para ele, faltou dizer, naqueles três minutos do debate sobre a reportagem, que a publicidade dos atos de governo é feita pela publicidade estatal, "o que é um assalto inconcebível ao bolso dos consumidores que pagam altos impostos".
Fonte: Estadão
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